sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ah, os doze...


Pois sim, este é a última e a primeira postagem do Oraite. Morre o Oraite nos Isteits e nasce o Oraiti. Se compliquei, explico. Já são três meses desde a volta da terra-do-Obamão-o-socialista e o velho Oraite continua no ar com uma última mensagem de maio. Voltamos para o Brasil em 15 de junho.

Ainda lá duas pessoas me perguntaram se o blog não teria um fim. Achei um exagero, são só dois leitores (a Isa e um tio-feirense-bancário-e-poeta), meio até dramática esse história de uma mensagem final. E o corre-corre dos últimos dias lá em Asheboro impediram a sentada. Foi duro, ninguém sabe o tanto que a Isinha comprou nos Isteits em três anos, fechamos cinco caixas de geladeira e jogamos num navio. Barco, este, aliás, perdido em algum lugar do Atlântico, se é que não foi parar no Pacífico, desviado pelo peso da carga mal distribuída no porão.

De volta ao calor do velho Planalto Central, à boa falta de (h)umi(l)dade de Brasília, um terceiro elemento me pergunta do blog. Opa, a dupla de leitores pode ser um triângulo. E veio um quarto comentário! Rapaz, ego e jornalista são sinônimos ocultos. Daí, tracei a meta: se doze pessoas perguntarem do Oraite, volto a escrever.

Fingi que esqueci o assunto e deixei a vida seguir. Procurar emprego é foda, nunca tinha feito isso. Os postos de trabalho sempre tinham me achado. E o tempo passando. Como quem não quer nada, passei a fazer um tracinho num papel na escrivaninha toda vez que alguém perguntava do blog.

Eis que o número cabalístico acaba de ser atingido. Ontem, a décima segunda pessoa me perguntou do Oraite. Tenho 12 leitores. Mais leitoras que leitores, para meu deleite e orgulho. Já estou fazendo o perfil sócio-econômico do público-alvo. Será disponibilizado em breve, logo que descobrir uma forma de fazer dinheiro com o blog. Adianto que todo mundo ganha mais do que eu, e apenas este anda de Fusca 86. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze. Uma dúzia. É tanta gente que não cabe nem em uma Kombi. Me sinto o próprio profeta.

Pois bem, por amor aos 12, em vez de um post-testamento, dou à luz ao Oraiti. Um apanhado do que foram os anos de América do Norte fica adiado, qualquer dia sai no novo Oraiti. E uma desculpa: tentei arrumar um nome melhor, mas fazer brainstorming sozinho é mais chato do que comer boneca inflável.

Visite o novo Oraiti.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Olá pessoas,

Tem bastante tempo que não levo uma multa. Ou tinha. Ontem fui premiado com minha primeira infração de trânsito na terra-da-polícia-em-todo-lugar. Melhor, a primeira flagrada, porque burlas já as fiz aos montes. Adoro, por exemplo, não parar nas placas de stop se não tiver outros carros na área. Simplesmente não vejo razão para frear completamente numa esquina descampada, se claramente não há em quem bater.

Nem lembro quando foi minha última multa real, porque a mais recente foi há uns dois anos e pouco ainda no Brasil. Mas eu era inocente, apenas fui laranja para uma amiga que, embora com pontos estourados, insistia em atropelar os pardais de Brasília.

Pois sim, ia eu ontem alegremente trabalhar no Wal às 21h45 - estou no terceiro turno desde a semana passada, das 10 da noite às sete da manhã, embora isso seja outra história - quando ouço a sirene bem no meu cangote, com todas as luzes piscantes que se tem direito. O polícia mal lançou a lanterna no meu rosto e eu já fui me explicando, é que estou atrasado para o trabalho. Para minha surpresa, "seu gualda" não estava preocupado com minha velocidade: há algum motivo para o senhor estar waving agora há pouco na pista?

Waving, waving, que diabos esse homem está falando? E ele já vistoriando o carro inteiro com o flash da laterna, a outra mão no coldre. Waving, waving, waving, surfar, ondas, há, ele deve estar dizendo que eu estava dançando na pista. Até entender o significado da palavra, ele já tinha repetido a pergunta três vezes. Eu claramente me enrolei, porque tenho alguma dificuldade em fazer duas coisas ao mesmo tempo - analisar os significados metafóricos de um substantivo inglês transformado em verbo e falar com um polícia que me aponta uma lanterna enquanto tem a outra mão na arma. Nestas horas, sou como o Ipad, uma coisinha de cada vez, que esse lance de multitarefas é muito complicado.

Finalmente processei a pergunta e só podia discordar. Lembro apenas de estar dormindo ao volante, esse papo de waving é invenção desse camarada. Me restou dizer novalmente, e gagejando, que estava atrasado para o trabalho, mas já era tarde. 'Seu gualda' disparou (palavras, apenas palavras, a arma continuava no coldre, mas sob a mão): O senhor bebeu? Desça do carro, por favor.

Por favor de polícia é fogo, né? Você nunca pode dizer não. Só que na saída outra trapalhada me incriminou mais ainda. É que meu velho Ford tem cinto de segurança transversal automático. Quando você abre ou fecha a porta ele corre num trilho e te aperta ou solta. Mas há o abdominal, que tem de ser colado e retirado manualmente. E quem vai lembrar disso sob-mira-de-lanterna-e-risco-de-ir-preso-por-embriaguez-em-outro-país? Resultado, abri a porta, o cinto do peito correu como planejou o Henry, mas eu não apertei o botão da faixa de baixo e fui catapultado às avessas. "Seu gualda" levou um puta susto e quase, quase desembainhou a pistola. Rapidamente me recuperei da bancada com a cabeça no volante, soltei o cinto e, antes que ele terminasse de sacar o revólver, fiquei em pé, mãos ao alto.

Vou repetir a pergunta, o senhor bebeu? Não, senhor, quer dizer, sim, senhor, mas não agora, senhor, mais cedo, senhor, vinho com pizza, coisa de horas atrás, mas foi só meia taça, senhor, que vou trabalhar, estou até atrasado... O senhor me faça o favor de recitar o alfabeto.

Pô, alfabeto em inglês sob essa pressão? Tentei conter o desespero - sempre confundo números e letras por aqui - e lembrei da musiquinha, quem já fez aula pode até cantar: ei, bi, ci, di, i, efi, gi...

Very funny, disse. Só que no fundo, no fundo "seu gualda" não tinha achado nada engraçado, pensou até que eu estava mangando dele (juro por deus que ouvi ele dizer are you mango me?). O alfabeto de trás para a frente, por favor, e agora. Nunca pensei em inglês com tanta clareza e agilidade como naquela hora: son of a bitch. Sem prejuízo das atividades sexuais da mãe do "seu gualda", ele falava sério a respeito do alfabeto ao contrário, seriíssmo.

Tentei argumentar, explique que em Português do Brasil não havia as letras K/Y/W, mas o cana achou outra vez que eu estava de gozação. Certamente, ele está por dentro da reforma ortogrática que nos foi imposta, deve até ter participado da elaboração, e exigiu todas as letras. Falei que eu ia me enrolar e aí é que ele ia mesmo achar que eu estava bêbado. Depois de muita luta, consegui convencê-lo a abri mão do desalfabeto em troca de andar cinco metros sobre linha reta. Ele aceitou, mas exigiu ainda que eu tocasse o nariz de olhos fechados. Perguntei se era o meu ou o dele, mas "seu gualda" realmente não tinha um pingo de senso de humor. É que, às dez da noite, o turno dele estava acabando e o meu apenas começando.

Depois de aprovado na bateria de testes, fui reconduzido ao meu carro, o policial pediu um minutinho e entrou em sua viatura de posse da minha carteira de motorista. Antes, porém, perguntou onde ou trabalhava. Wal-Mart, respondi já puto porque estava atrasado e teria de descontar o tempo no meu horário de almoço, isso lá pelas três da manhã. Coisa estranha é comer feijão de madrugada.

"Seu gualda" voltou e disse que minha documentação e a do carro estavam oquei e me entregou uma multa. Daí foi a minha vez de usar a frase: are you kidding me? Expliquei que eu tinha um part time job no Wal-Mart, que ganhava US$ 8,15 por hora, que era sustentado pela mulher e que, definitivamente, não tinha dinheiro para pagar a multa. I know, disse em tom amigável, this is just a warning ticket, it means nothing, you can throw it away. Grande figura, o "seu gualda"!

Beijos e saudades,

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Novos álbuns

Olá, pessoas.

Aí na esquerda há agora três apresentações de fotos. O domínio dessas coisinhas de tecnologia não é minha especialidade, aliás, sequer desejo - tenho apenas resignação, então, é meio bagunçado mesmo.

Na verdade, a Isa teve de pôr as fotos no Picasa dela (olha o respeito!) e liberar aqui no Oraite. Legendas, quando há, foram da Isinha também.

O primeiro grupo de imagens é do domingo da Páscoa em Washington. Aliás, vimos a comitiva do Obamão saindo para a Igreja. Quinze carros. Eu aposto que ele era o primeiro batedor, na moto.

Na sequência há registros da viagem que fizemos mês passado para Charleston, Carolina do Sul. Ótima comida e arquitetura histórica, mas o melhor foi visitar a reprodução de uma base no Vietnã e o porta-aviões e submarino, ambos da Segunda Guerra. Perceba a mudança de temperatura de um mês para o outro. Nevou em março em muito lugar e agora dá para andar sem camisa pelas ruas (não fosse o pudor moralista reinante - uma família daqui teve de pôr sutiã numa estátua de gelo no jardim porque os seios estavam visíveis, deu polícia e tudo mais).

Por fim, há ainda fotos da Flórida, de dezembro: Miami, Hollywood Studios, em Orlando, e base da Nasa, em Cabo Canaveral.

Clicando em qualquer um deles você pode navegar por todos, com as imagens em tamanho maior e opção de slide show.

Beijos e saudades,

terça-feira, 13 de abril de 2010

Sobre tíquetes e bancos


Olá, pessoas!

Está dado o passo definitivo para a volta: a compra das passagens. Estamos, eu e Isa, de tíquetes em mãos para 14 de junho, no novo vôo Atlanta-Brasília. Marisa fica por aqui mais um tempo, deve voltar em 12 de julho. Entre uma data e outra, a Pequena vai participar de um summer camper de teatro. Vão encenar Mogli, o Menino Lobo. Por aqui eles chamam de The Jungle Book, o que mostra que uma boa tradução pode melhorar o título.

Chegaremos no dia 15, justamente estréia do Brasil na Copa. Eu, que nunca dei muita bola para futebol (entendeu o trocadilho? Sinapses, sinapses...), nunca esperei uma partida com tanta ansiedade.

Por aqui estamos em pleno ritmo de volta, a casa começa a esvaziar, à medida que vendemos os móveis ou despachamos caixas e mais caixas com tudo que a Isa comprou na terra-do-você-sempre-pode-ter-mais. Acho que agora ela tem roupa para seis meses sem repetir uma peça. Fora as bolsas.

Na operação desmonte encontrei as provas do meu primeiro roubo, cometido em um banco aqui de Asheboro. Sim, já roubei um banco, aliás, várias vezes. Tá bom, antes de explicar tenho de confessar que não foi exatamente o primeiro roubo. Fazendo uso da absurda prescrição de crime existente no Brasil, vou revelar o ocorrido há mais de 20 anos.

Era final dos 70 ou início dos 80 e morava vovó Maria (essa é a Maria materna, porque a paterna também chamava Maria) num casarão na Avenida Senhor dos Passos, a principal de Feira de Santana naqueles idos. Quando alguém dizia que estava "indo para a rua", queria dizer que ia à Senhor dos Passos ou vizinhanças. A tal casa ficava sobre uma loja na qual décadas antes meu avô tinha uma sapataria. Do outro lado da rua esse mesmo meu avó foi assassinado a tiros, bem diante dos olhares de mainha e de um dos meus tios, que esperavam a chegada do pai da sacada. Não conheci o vovô e até hoje não sei o porquê de o mataram, mas hoje ele é nome de rua lá em Feira.

Sim, ao crime, porque se for contar a história da família ou as consequências do assassinato o espaço acaba. Domingo íamos sempre almoçar na casa de vovó Maria. Semana na casa da paterna, semana na casa da materna, mas sempre vovó Maria. Aliás, a escolha da vovó Maria a visitar era tema de brigas constantes. Minhas recordações de Natal incluem meu pai de cara amarrada porque estava ou tinha de ir à casa da outra Maria. E olha que se tem alguém sem o direito de reclamar de sogra é seu Fernando.

A sapataria, sem o vovô, faliu e vovó Maria passou a alugar o espaço. Não sei se antes de mim outra coisa operou naquele lugar, mas desde que me conheço por gente funciona lá a bomboniere da dona Odete. O nome deve ser outro, mas é definitivamente uma bomboniere e a dona é a dona Odete. E esses almoços eram do tempo em que domingo era domingo, com missa, lojas fechadas, famílias reunidas e tudo mais.

Vovó Maria sempre fazia pratos que só de pensar me enchem a boca d'àgua - como a macarronada, o frango assado ou o fígado ao molho (sim, fígado pode ser delicioso), seguidos de um pudim que nunca encontrei igual em qualquer lugar. Mas a sobremesa da molecada era mesmo no depósito da dona Odete. Como antes a loja era da família, havia no quintal uma porta de acesso ao estoque da então sapataria. Sem muito esforço a gente arrombava a porta e fazia a festa. Pronto, depois da confissão só me restam dois pai-nossos e cinco ave-marias para ser perdoado.

De volta ao banco. Há aí nesta foto umas dúzias de canetas e lápis. Não mais do que cinco ou seis foram compradas. As outras foram apenas surgindo, a maioria trazida pela Isa como brindes de atividades docentes. Eu dei alguma contribuição.

Recebo o pagamento do mercado do Wal quinzenalmente e vou direto ao drive-thru do banco depositá-lo na conta da Isinha. Mas não é o suficiente - o Wal-Mart é um histórico e famoso mau pagador, ela ainda exige que eu lave as roupas, o banheiro e a louça. O divertido do banco de dentro do carro é que para mandar e receber papéis a gente usa essas cápsulas de acrílico em um tunel de ar comprimido. Me divirto profundamente cronometrando o tempo de ida e vinda da cápsula.

E a moça do caixa sempre me mandava o casulo de volta com uma caneta dentro. Oba, brinde, bolígrafo no bolso. E foi assim por vários meses, até que uma dia a jovem me interfonou, e da janelinha eu vi o sorriso delicado no rosto da bancária:

- Seu Marico (aqui todo mundo me chama de Marico, eles simplesmente não conseguem pronunciar meu nome), o senhor poderia fazer a gentileza de, desta vez, não levar a caneta do banco?

Beijos e saudades,

quarta-feira, 7 de abril de 2010

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O blog da Pequena



Eu devo realmente estar ficando velho.

Não, não, não que eu ache isso ruim. Muito pelo contrário, envelhecer é um prazer inesperado. Me sinto melhor a cada dia, fora uma dorzinha aqui, outra ali, o crescimento da barriga e a queda de cabelos. Eu tinha decido fazer tratamento contra calvice, só que o médico disse que o maior efeito coletaral era o risco de diminuição do desempenho entre quatro paredes. Nunca mais voltei ao consultório do cidadão. Achei que a careca me cairia bem, mais do que eu, a Isa, que passou ela mesma a raspar minhas madeixas, um gesto desesperado para esconder a clareira que se abre no centro do cucuruto.

Eu dizia que a juventude é enfadonha, uma espécie de pressa-lenta que nunca termina, é como tentar correr a maratona no ritmo dos 100 metros. O jovem é um cochilo do divino, quase um erro da natureza. Vai ver Deus era muito novo quando fez o mundo. Se fosse mais experiente, o Criador teria incluído um período sabático no nosso amadurecimento. Não, sabático é coisa de rico em crise de meia idade. O melhor mesmo seria uma hibernação. É, todo mundo devia hibernar dos 18 aos 32 anos. Daí a gente acordava pronto para a vida, depois de ter curtido a infância e sem o imediatismo bobo da casa dos 20. Durante esse período cada um curaria todos os traumas de infância, para desespero dos psicólogos, que agora teriam de mudar de ramo. Aliás, se a hibernação-amadurecedora existisse, a profissão sumiria. Não sei se o mundo seria melhor sem psicólogo, mas com certeza eu economizaria um dinheirão em terapia.

O fato é que, apesar de ter apenas 36, me sinto completamente de outra época. Tudo mudou tanto nestas duas últimas décadas que estou quase obsoleto, superado, um objeto do século passado. E o século passado tá ali, se a gente olhar para trás ainda o vê na esquina. Só que agora dez anos parecem uma eternidade.

Uma das coisas diferentes hoje é a relação pai/mãe-filho/filha. Me lembro de ter um medo enorme de meu pai, quando ele ia chegar do trabalho a gente tinha de estar em casa e de banho tomado, com a tarefa da escola pronta. Essa última parte eu furava, mas no resto seguia o mandamento à risca. E a gente apanhava também. Lá em casa, não do pai, mas da mãe. Melhor, eu disse a gente, mas devo corrigir: eu apanhava. Minhas irmãs e o irmão nunca fizeram por merecer. Mas eu lembro de ter levado surras quase homéricas de dona Nilma nos anos 70 e meados dos 80.

Não quero discutir o efeito educativo da palmada, mas era um direito dela me bater e pronto, ninguém discutia isso. Parêntese. Vou avisar logo aos saudosos da pancada que não existe esse tal de corretivo físico, mainha sofria bem mais do que eu nas surras. Eu vou te bater! Tá aqui ó, eu trouxe o seu tamanco - e esticava a mão aberta. Uma, duas, três, dez chineladas e nada. A senhora cansou, o braço tá doendo, acha melhor buscar o cinto de painho? Em mim não fez nem cosquinha... Fecha parêntese.

Agora não, a coisa está mais complicada. Outro dia, a Isa apertou o braço da Marisa e foi um escarcel, a Pequena saiu me gritado a mamãe me bateu, a mamãe me bateu! Se ela tivesse visto as surras que eu levei... Mas a Isinha nem tinha encostado o dedo na guria, apenas segurou o braço com um pouco mais de força, nem a marca dos dedos ficou. Pois a menina ficou apavorada, com cara de eu-vou-te-denunciar-ao-SOS-Criança.

Outro novidade é o castigo escolar. Eu já fiquei muito tempo de pé com a cara na parede. Também já escrevi dezenas, centenas de vezes no quadro negro (que por onde passei - e são quase três décadas de escola em uma dúzia de instituições - sempre era verde) 'não vou mais puxar o cabela das meninas' ou 'não devo chutar a pró'. Pró é como baiano chama a professora, é que dá uma preguiça danada dizer essa palavrona toda. E passei horas sentado na cadeira do burro. Não só sentado, mas usando um chapéu enorme feito de cartolina que tinha até as orelhas do burro. As orelhas podem até ser uma traição da minha memória floreada, talvez até todo o chapéu, mas que a cadeira de burro existia, existia.

Eu ainda ia dizer que apanhei de palmatória na escola, mas essa eu tenho certeza que é filha da minha imaginação. Por outro lado, no colégio de Salvador onde eu terminei o primeiro grau, lá pelos 14 anos, os alunos tinham de ficar em pé toda vez que um adulto entrava na sala. E só podia sentar quando, e se, a pessoa liberasse. E nem era colégio militar ou de freira.

Hoje a vida da molecada é muito mais mole. A Marisa está sob punição escolar. Calma tio e tias CDFs, a sobrinha continua seguindo os passos de vocês e já está passada de ano, como manda a tradição familiar que vocês criaram e esqueceram de me avisar (e, principalmente, de deixar um restinho do gene para mim). É que estamos de férias, chegamos hoje a Washington, DC e só voltaremos para casa no dia 11. Aqui há o que eles chamam de spring break, uma pausa de uma semana nas aulas para comemorar a chegada da primavera. Lembram dos dias sem aulas que a Pequena passou em casa por causa da neve? Pois sim, o castigo, como dizia toda Nilma, sempre volta a cavalo. A neve de janeiro reduziu o recesso de abril para meia semana. Como a gente já tava com hotel pago, viemos assim mesmo. Só que como na terra-do-hamburger-e-fritas-no-lanche-escolar faltar aula dá assistente social na sua porta e até cadeia para os pais, Marisa foi obrigada a escrever um relatório diário da viagem.

Nesses tempos muuuudernos, o formato escolhido, sem gasto de papel e obtenção de 314 créditos de carbono, foi o blog. O endereço da página da Florzinha é www.iaroundtheglobe.blogspot.com, mas você pode clicar aqui que eu te levo lá. Resumindo, eu dei essa volta toda para dizer: tem blog novo na área, vá lá e deixe um comentário.

Beijos e saudades,

(imagens: www.clasesparticulares-madrid.es e www.eb23-cmdt-conceicao-silva.rcts.pt/sev/hgp)

segunda-feira, 29 de março de 2010

Doze anos


Quem tem filho já passou por isso, ou vai passar.

Quem não tem, está livre do constrangimento. Livre também de muitas outras coisas, como a primeira noite. Ah, a primeira noite. Ô, enfermeira, chega aqui por favor. É assim mesmo, faz esse barulho todo quando dorme? E o tamanho, tô achando ela muito pequena, só quarenta e poucos centímetros, dois quilos e quatrocentos, tem como pesar de novo, não tô confiando nessa balança não, a mãe engordou 19 quilos, posso pesar ela aqui embaixo na farmácia? Dona enfermeira, a senhora me desculpe ficar chamando toda hora, é normal esse roxo em volta do olho, e de um olho só? Mainha vai achar que eu já deixei ela cair... Eu sei que a senhora pediu para só apertar o botãozinho em caso de emergência de verdade, mas é sério, o peito dela não sobe e desce, tem como conferir se tá respirando, se o coração tá batendo, pode deixar um estetoscópio aqui comigo? Enfermeira, enfermeira, estou sendo meio chato, mas garanto que esta é a última, tô preocupadíssimo, essa menina nasceu tem 19 horas e só faz dormir, até para mamar foi dormindo, não é possível, tudo bem que ela é filha de baiano, mas tem limite, né não?

Antes até, quem não tem filho está liberto da primeira imagem. Aquele exato momento em que você vê a figurinha pela primeira vez. O médico mostra todo orgulhoso: olha aí, Marcio, a dona Marisa, saudável e, para tranquilizá-lo, com só cinco dedos em cada mão, os mesmos apenas cinco que apareceram em todas as ecografias, apesar da sua desconfiança. Gente, tá toda amassada, e olha que foi cesária... É essa mesmo, o senhor acompanhou tudo, doutor, não trocaram não, né? Tem como amarrar uma fitinha do Senhor do Bonfim para não misturar?

Falar que a primeira imagem é a que fica é ridículo. Se, quando fecho os olhos para as orações no fim do dia, o rosto da Florzinha que me aparecesse fosse aquele de filhote-de-sharpei-com-dor-de-bariga, certamente eu teria pesadelo toda noite. Pessoas, eu estou falando sério, a menina não tinha cabeça, era um cone que mais parecia um ovo de avestruz. E cabia inteirinha na palma de minha mão.

Os não-pais também são poupados do primeiro banho. É assim, sua sogra resolve visitar parentes em outro estado justamente na semana do parto, aí você traz sua mãe da Bahia para ajudar nos primeiros dias, já que nem você ou sua esposa tocaram em um recém-nascido antes. Tudo certo, vocês voltam para casa depois de dois dias no hospital. No fim do dia, sua mãe pergunta: e quem vai dar banho nela? Como assim, mainha, quem vai dar banho nela, a senhora é mãe de quatro? Ah, meu filho, eu nunca dei banho em vocês nessa idade não, quem fazia isso era sua tia Anete. O quê? Por que a senhora não falou antes? Eu importei a pessoa errada! E lá vai você sozinho, a esposa toda estrupiada em um pós-cesária complicadíssimo, dar o primeiro banho.

Outra de que os não-pais são poupados é do ensino a pedalar. Papai, eu vou cair? Vai, com certeza. E vai machucar? Pode ser que sim, pode ser que não. Você vai segurar? Vou, até você conseguir se equilibrar sozinha. Então, tá, não solta não. Vai pedalando, Pequena, vai pedalando. Não solta, papai, não solta. Tô segurando, menina, tô segurando, oxente! Segura, Papai, segura, que eu não consigo ficar sozinha, não solta, não solta! E você, que já está só assistindo há uns 15 metros, se desespera: eu esqueci de explicar como faz a curva...

Quem não é pai também fica livre das fraudas. Mainha diz que cocô de bebê não fede, só se foi o dos filhos dela, porque o da Marisa era phooooda. Pior que o dela, só o dos outros. Estava a Pequena feliz da vida na piscina de bolinhas do shopping, a mãe às compras. Daí a funcionária do parquinho, meio sem jeito, moço, acho que sua filhinha fez cocô... Não, não era dela. Algum bunda-mole cagou a piscina de bolinha inteira. Caos total, parque interditado, cinco funcionários em volta e sua filhota toda embostalhada, e com a merda dos outros. E a mãe, que levou a tradicional sacolinha de fraudas e roupas extras, ainda fica sem bateria no celular.

E os primeiros passos? Só não sendo pai para saber a tranquilidade que é a vida sem os primeiros passos. Olha a mesa, ela tá indo no rumo da mesa, vai bater bem na quina! Isa, ela ta correndo em direção à parede, segura. Calma, meu amor, ela vai parar. Puf, tá lá o galo crescendo. Minha senhora, pelamordedeus, me desculpe, é que ela está aprendendo a andar e só para quando atinge um obstáculo sólido, no caso, suas pernas.

Quem não é pai está livre destas e de muitas outras, mas quem tem prole um dia tem de respoder à pergunta: como eu nasci?

Depois de todas as enrolações de praxe - cegonha, abóbora, sementinha, roda dos enjeitados, como hoje a Marisete completa 12 anos, é hora de contar a verdade. Pequena, você chegou voando, como fazem todos os anjos.

Quem não é pai da Marisa, está livre de ser feliz.

Beijos só para a Florzinha, saudades de todos,